24/06/2010

Cumplicidades

Hoje passa os dias sentado junto ao borralho, a um canto escuro da cozinha que já foi a do forno, vestido com um fato de treino escuro e com o seu inseparável chapéu preto, muito gasto, enfiado na cabeça.

Careca e muito magro (e incrivelmente parecido com a personagem Locke, da série Lost), é uma sombra do homem alto, forte e duro que conheci durante a infância e juventude.

A maior parte do tempo está silencioso, perdido nos seus pensamentos. Quando lhe perguntamos em que está a pensar, diz sempre “em nada”, com um meio-sorriso. E volta a deixar-se cair naquele estado de abstracção que já lhe é característico.

A única coisa nele que permanece igual são os olhos, de um cinzento prateado que nunca vi em mais ninguém (o quanto, em pequena, invejei aqueles olhos!) e que ficam sempre rasos de água quando o abraço e lhe digo que o quanto gosto dele.

“Um dia, queira Deus que seja daqui a muito tempo, você vai-me fazer muita falta, avô”, disse-lhe uma vez, não há muito tempo. E ficámos de mãos dadas, a olhar um para o outro e a chorar baixinho.

Ele tem mais netos. Somos oito, ao todo. Mas a relação comigo sempre foi diferente. Mais forte. Mais cúmplice.

O meu avô foi o pai que nunca tive.

Lembro-me do quanto ele era bruto, irascível, um verdadeiro ditador. Tudo tinha que ser como ele queria. A típica mentalidade machista da sua geração.

Ao mesmo tempo, tinha um coração de ouro. Adorava os netos. E cuidou sempre de nós, sobretudo de nós quatro – a minha mãe, eu e as minhas duas irmãs – quando os meus pais finalmente se divorciaram, depois de anos de maus tratos e violência doméstica (por parte do meu pai).

Nunca teve carro. Ia para todo o lado de motorizada. Sempre que era preciso transportar alguma coisa mais volumosa (nós inclusive), fazia-o acoplando um carro de mão à motorizada. Que vergonha passávamos quando tínhamos que ir à vila (agora cidade), naquele meio de transporte!

Eu também tinha vergonha (que idiotice, vejo-o agora!) quando ele ia, na sua motorizada, buscar-me diligentemente ao liceu, no final das aulas. Marcava com ele sempre numa rua bem longe da escola, onde sabia que não corria o risco de ser vista por algum colega.

Teve sempre o cuidado de nos dar os “bons conselhos”: “estuda. Se queres ser alguém na vida, tens que estudar!”; “o saber não ocupa lugar!”; “para que a vida nos saiba bem, primeiro tem que saber mal”; “na vida, somos como as crianças, primeiro temos que gatinhar e só depois é que começamos a andar”.

De todos os netos, fui a única que se esforçou por ouvi-lo e seguir o que nos dizia. Para “o nosso bem”, sublinhava. Fui quem mais se esforçou na escola, a única que frequentou o ensino superior, a única que se licenciou. Se bem que a escolha do curso não tenha sido a melhor e a situação profissional esteja longe de ser a ideal. Mas isso é outra história.

Quando queimei as fitas o meu avô já tinha sofrido um AVC e já não era o homem que conheci. Mas, mesmo assim, quis que estivesse comigo naquele momento, tão especial para os dois.

Quando me casei, ele já tinha sofrido o segundo AVC, mas isso não inviabilizou que fizesse questão que fosse ele a levar-me ao altar. E ele foi. Confuso, mas foi.

Hoje já está bem, em termos mentais.

Fisicamente está magríssimo e tem muita dificuldade em movimentar-se. Consequências da idade.

Adoro visitá-lo, embora o faça muito menos vezes do que devia. Adoro roubar-lhe o chapéu, colocá-lo na minha cabeça e ficar a fazer poses para ele. “Fica-me bem, avô?”. “Fica, pois!”, responde, invariavelmente.

Adoro esfregar-lhe a careca, antes de voltar a colocar-lhe o chapéu.

Às vezes sento-me ao lado dele e faço-lhe um monte de perguntas sobre a vida de outros tempos. Peço-lhe que me descreva o pai, a mãe, como conheceu a minha avó, como namoraram, como era a vida de ourives ambulante na Beira Baixa. E, nessas vezes, há nele qualquer coisa que desabrocha e ele põe-se a falar, a falar, a contar histórias e a lembrar as coisas que viveu, de uma forma tão vívida que quase parece que também faço parte delas.

E eu prometo a mim mesma que, na próxima visita, levo comigo o gravador para registar todas as suas palavras. O que nunca acontece.

Outras vezes acontece estar a família toda reunida, naquela confusão típica das famílias grandes, e os nossos olhares se cruzarem. E sorrimos. Cumplicemente.

Amo-o de uma forma que não sei descrever. E não podia deixar de lhe prestar esta pequena homenagem, mesmo que fique tão aquém daquilo que ele merece.

2 comentários:

  1. Lindo este texto! Tão, tão lindo! Adorei!

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  2. Adorei o texto. Bastante sentido, sente-se também daqui deste lado...
    GMDT
    C

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